Ajuda na rodoviária (Histórias do Córrego)

Na rodoviária do Tietê, Nildo se instalou como nômade. Não costumava parar num ponto. Às vezes um viaduto, um toldo, uma praça. É que a rodoviária renovava sua memória, trazia boas lembranças, companheiros de longa data, bagagens.Ele e seu amigo Paulo iam lá todo final de tarde contemplar aquele montão de gente com malas partindo e chegando. Paulo se animava com as anedotas por trás das passagens de ônibus: Poços de Caldas, Porto Alegre, Rondônia, Buenos Aires, Cascavel, Vitória. Gente do país inteiro:- Um gaúcho! Com aquele chimarrão… O caipira…

Empolgado como ele, o velho Bartolomeu proferira seus casos. Bartolomeu morava numa pensão nas beiras do Brás. Buscando fugir do seu cotidiano solitário, viu na rodoviária um lugar onde pudesse conhecer pessoas. Com a garrafa de pinga no bolso da jaqueta, ia ao ponto de encontro onde se juntavam seus amigos, Nildo, Paulo, Seu Amaro, o velho Dito, as pessoas que viajariam. Cada um deles desembarcou ali há três décadas para tentar a sorte. E se havia sido o ponto de partida, seria o ponto de partir. De ver gente partir para o interior do Brasil. De rever a infância e a juventude. Contavam suas histórias repetidas vezes um para o outro, para a família que vai ao Rio de janeiro, para as jovens de Amazonas. Concordavam com o casal do Paraná. Disfarçados para desvencilhar dos vigilantes, interagiam naturalmente com quem passava.Na Rodoviária, Nildo tem seu consolo, um colo onde pode sofrer e sorrir. Meia-noite, ele dorme numa rua próxima à ponte do rio sujo.  Pela manhã, vai ao lixo do Shopping, cata comida, batata-frita, carne… Faz seu banquete com o desperdício dos consumidores. Alimenta-se, descansa e volta para a rodoviária novamente. Os passageiros, os amigos, as viagens…. Nos bate-papos diários, conta suas histórias da rua, seu passado no Ceará, sua chegada em São Paulo:- Eu tive mulher, filhos, emprego, diploma, carimbo!- O que houve?- inquiriu um passageiro engravatado.- Perdi! Tudo se foi! Tudo acabou!- Como?- Suportar! Não aguentei! Se manter em pé é muito difícil.- Força de vontade, amigo! Recupere-se!- Força de vontade? Tentei livros espirituais, santos, palestras motivacionais, exemplos de sucesso, manuais… Nojo! Aparência! A verdade é que ninguém suporta! Fingem se segurar crendo na melhora futura que nunca chegará!- Nossa! Que ceticismo!- Isso indica algo?- É! Sim! Veio a mim essa vida que levo. Às vezes me sinto no limite.- Problemas! Problemas! Aposto que toma comprimidos?- Único jeito de trabalhar! Sem eles, a máquina não funciona!- Normal! Eu era assim! Até que estive nessa rodoviária…- Estou por um fio!- Viaja a negócios?- Viajo!  Trocaram recordações por cinquenta e dois minutos: a família, os filhos, uma história engraçada, o medo do futuro. O passageiro engravatado teve de ir para a plataforma, uma transação no Rio de Janeiro o esperava. Não revelou sua profissão nem seu nome.- Bom homem! Pena que sofre!- O que disse? – bradou outro passageiro – com calças rasgadas, cabelos desengonçados, um caderninho e uma caneta.- Falei do sofrimento!- Meu assunto preferido!- Gosta do sofrimento?- Escrevo o sofrimento!- É advogado ou Deus?- Sou poeta! E você? O que você é?- O que sou? É… Sou… Sei lá! Nildo!- O sofrimento Nildo…Infindo!Das estrelas aos sapatos,Na ilusão do destino,O sofrimento é um fato.Assola os miseráveis,Os desabrigados, os vencidos,Nos olhos descartáveis,Na vitrine que reflete Nildo,O sofrimento infinito!O poeta recitou em cima dos bancos, em voz alta, para a atenção da rodoviária. A segurança logo se prontificou:- Desse daí, vagabundo! Tá pensando que tá no circo? Que porcaria é essa? Vaza! Some! Ao avistar Nildo, um dos guardas arrastou os dois pela rodoviária:- Mas eu paguei… – dizia o poeta.Os seguranças estavam de olho em Nildo. O jeito do poeta, seu comportamento, denunciou o veredito: Nildo era cúmplice.- Vão gritar baboseira na casa da puta que te pariu! Se voltarem… – arremessou-os na calçada:Nildo ficou encafifado com o doido poeta:- Maldita poesia! Se tivesse ficado quieto… Certo! Não se preocupe! Eles não perdoam ninguém.E o poeta recitou:- O poeta está sendo caladoComo bandido procurado,No meio do buraco urbano,Entre condomínios e carburadores.O poeta é chamado insano,O poeta é profano!Nildo ficou estático. Ao seu lado, uma mulher carregada de malas descia as escadas da rodoviária. Jocasta vinha do Rio Grande do Sul. Um irmão seu migrara para exercer advocacia em São Paulo. A visita de fim de semana era um passeio. Finalmente, pudera financiar a passagem: o faturamento evoluía na sua loja de roupas. Chegou em São Paulo com a notícia do crescimento no número de crimes. Trazia o mesmo pavor do sul. Lá ela pôs câmeras na sua loja, mudou-se para um condomínio, assinou um seguro de vida, assistiu dicas de proteção no jornal.Entupida de bagagens, Jocasta deixou as malas caírem no chão. Sem que se tomasse conta, Nildo foi até ela e puxou as malas:- Deixa comigo! – disse Nildo- Não! Por favor, não!            Jocasta gritou desesperada:            – Cuidado!Nildo levou as malas nas costas. E o poeta recitou seus versos:            – Ajuda na rodoviária!            Revelação incendiária            Nesse fado contaminado,            Alguém ajuda sem trocar!            Eis o ato consumado.            Jocasta se desesperou. Mal chegou a São Paulo…            – Pare! É dinheiro que você quer? Ladrão! Ladrão! Polícia! Socorro, polícia! – esbravejou dentro de si, mas não disse nada.            Nildo foi serenamente pela calçada. Com ele, a recordação dos passageiros da rodoviária, do homem engravatado, dos seguranças, de Paulo, Bartolomeu, os amigos, o poeta, a fuga.            Jocasta queria a polícia para prender o réu indiscutível: sujo, malfeitor, incômodo da rodoviária a roubar malas de turista com rapidez. Um ladrão! Certamente, um ladrão!               – Parado! Parado, filho da puta! – diria a polícia.            Nildo não pararia. Na imaginação de Jocasta, o bastante para três tiros acertarem-no pelas costas:            – Que desgraça! Ele queria dar uma ajuda na rodoviária. Não! É isso que acontece com ladrão!            Jocasta se agitava nos seus pensamentos ocultos. Nildo roubara sua estabilidade. Merecia! Ele merecia esse fim! Sem hesitação, ela recuperaria a posse dos seus bens e de sua paz.            Nildo enfiou as malas num taxi:            – Pronto! Este te leva onde quiser.            Retirou umas moedas do bolso e foi comprar pipoca na esquina.
Conto escrito no começo de 2012, publicado em Abril de 2018, livro Histórias do Córrego, autor: Daniel Neves, Editora Letras do Subsolo
Foto: Renato Queiroz

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