O amor do farol, Histórias do Córrego

Toda vez que vou limpar carros no farol da Avenida Tiradentes, me lembro do garoto José e suas histórias na faixa de pedestre, sempre com aquelas balas, sorridente, procurava transparecer alegria para os clientes, a maioria dos carros nem abria o vidro, outros, porém, davam moedas, de pouquinho em pouquinho ele ganhava o dia.

Se eu dissesse o que aconteceu com José, não sei se consigo.
            Confesso que nunca tive a mesma desenvoltura do menino, ofereço o serviço de limpar os vidros, uso detergente, uma bucha e uma garrafa de água, pra aqueles que querem, estou ao dispor, pra os que não dão bola, deixo meu desprezo. Mas José reagia igual para todos.
Depois de sete horas ali, conseguia uns trocados para fumar Crack e comer. Esse não fora o seu único ofício; costumava pedir esmolas, comercializar drogas, roubar bolsas. O que aparecia ele se virava. Já com 14 anos trazia longa carreira no crime.
 Às vezes, de noite, entre as paredes esburacadas da construção abandonada onde dormia, fitava o céu solitário; os dois se encaravam e José o intimava:
            – Afinal, não me há de cair em cima.
            E o céu:
– Nem tu me hás de escalar.
A pele negra do menino sumia na imensidão das estrelas, só ficavam as marcas das porradas que levou da polícia; mas a luz da lua iluminava o ódio feroz contido nos olhos de José. E o medo, o frio, a madrugada seguia silenciosa. Rapidamente, a tempestade escorre sobre seu rosto manchado. Dorme com os ratos! O amanhecer está de barriga vazia; os pesadelos da madrugada atormentam… Vai para mais um expediente com seus trutas da rua. Quem sabe apareça comida!
            No farol, nenhuma moeda no seu bolso:
– Balas! Senhora… Senhor…
Nesse dia, os automóveis aceleraram infinitamente em volta de José e não pararam. Pouco lhe interessava o tempo cronometrado das pessoas, José só queria vender suas balas. Desanimado, sentou-se na calçada com a repulsa de si, com a rejeição que aqueles carros o impunham. Ninguém gosta mais de balas? Joga as balas no chão e levanta…
José dá de encontro com uma moça. O olhar dela encontra os olhos do menino como a água dos rios encontra a água dos mares. Os pés descalços sobre o vulcão do asfalto provocam a erupção por todo o corpo; as máquinas desligam, os passos apressados pisam no freio, as rodas cansam, a fome foge. Aquele olhar é o céu que fitava, é firmamento;
            Dentro do carro está Vera, 40 anos, diretora de uma grande empresa de Cosméticos, ela vivia atolada em contratos, metas, investimentos. Quase nem dormia direito, seu celular tocava nas horas mais absurdas. Já almejava a presidência.
Sem tempo pra família, vez ou outra, tentava executar a profissão de mãe; dar uma assistência sentimental, já que o Arnaldo, seu marido, lambuzava-se em negócios e prostitutas. Ela levava os filhos para comer no Shopping, depois vinha o afeto do programa de comedia infantil das nove horas. Como era bom deixar as crianças entretidas com a TV e os brinquedos eletrônicos. Assim, ela não tinha de se preocupar muito com as bagunças que eles faziam, Pedro, de 7 anos, e Júlia, de 9. 
            Nos fins de semana, Vera consumia, comprava cremes, joias, bolsas caras, trocava de carro uma vez por ano.
            Nesse dia, Vera volta do almoço com seu novo carro. As mãos sobre o volante repetem a mesma direção. Pára no sinal vermelho como sempre parou a vida inteira. O sol forte racha o vidro do carro e os óculos escuros. Vera subitamente tira os óculos, passa as mãos no rosto. Um tímido movimento para o lado e o encontro com o olhar de José. Foi como se estivesse olhando o poço de José, seus conflitos e desalentos. Levemente, um pensamento lhe toma:
            – Um garoto? Como sofre esse garoto! Sua alma chora, seu corpo treme. Meu Deus! Um garoto. Por que o garoto sofre? Em que mundo estou? Um garoto sofre e eu a seguir essa rotina patética? Que vale tudo isso diante desse menino que sofre, mas tem olhos que são lindeza, olhos de mel que conseguem a doçura até na boca de um urso?
            Vera se desmanchava no seu espanto. Via a dor e a ternura juntas no olhar de José. E assim como quem toma um café, virou o mundo de cabeça para baixo:
            – Esse menino! Tão lindo é esse menino! Como eu queria abraçá-lo e beijá-lo.
            Vera ama aquele garoto. Quer levá-lo para casa, dar comida e cama, adormecer os lábios no seu rosto. Que se danem os filhos e o cartão de crédito, o marido, a empresa. Por um instante, Vera não acreditava mais no seu trilho. O garoto José, que ela tampouco sabia o nome, havia estremecido sua montanha com apenas um olhar.
            – Eu poderia colocá-lo numa instituição de caridade. Numa ONG apoiada pela empresa. Tiraria fotos nos jornais, mostraria a solidariedade da instituição.
            Do outro lado, José tentava compreender a intenção daquela moça. Talvez ela pudesse lhe dar algum trocado ou um prato de comida para aliviar a fome. Talvez ela pudesse o levar na praça para brincar de ser a mãe. Ou poderia levá-lo para cama, tocar em seu corpo. José vê um olhar por traz daquela madame enfeitada que lhe fascinava. Poderia ficar junto daquele olhar. Há esperança no coração do menino. Ela vai sair do carro e abraçá-lo. Ou talvez ele tire uma faca do bolso:
            – É um assalto, vadia!
            Roubaria suas pulseiras e sua bolsa. E se ela reagisse…
            As pernas a formigar de Vera propõem a decisão de sair. De largar o carro que não leva a lugar nenhum. Nos meros quinze segundos em que o farol está fechado, eles vivem o pueril olhar no turbilhão de alucinações. Quinze segundos deram a Vera o que uma vida inteira não foi capaz. E agora, ela não entendia todo esse tempo de vida.
            José nunca havia encontrado um carro que tivesse alguém dentro e o olhasse diretamente.
            Passaram-se quinze segundos e os dois se olharam como se a cidade ao redor fosse irrelevante. Eles viam a si mesmos. E o que restava era o agir.
O olhar, o quebra-cabeça, os pensamentos entre Vera e José. Tudo ali. Eles se olham e o sinal abre.(Um dos 14 contos da obra “Histórias do Córrego”, de Daniel Neves, próximo livro a ser publicado pela Editora Letras do S

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