Moisés, a descoberta dos mandamentos ao contrário

Do livro Histórias do Córrego, escrito por Daniel Neves. Adquira o livro em nossa loja ou pelo email editoraletrasdosubsolo@gmail.com

1.    Prisão da escritaA prisão! É lembrando essa expressão que começo a escrever o que se passou comigo. Fui levado à prisão dessa sociedade! Já estava algemado antes da detenção! Acordei, nessa manhã, pensando no domingo; nenhuma visita pra mim. Será que Ofélia viria me visitar? Perdi meus companheiros! Ninguém resta além do que sinto e esse papel onde caem minhas lágrimas em palavras. O banho de sol já começou. Prefiro ficar aqui nessa cela com uma fecha de luz entre as grades. Os manos se entediam no pátio, os muros são enormes, há uma arma pronta para esmagar a mais leve sublevação. Qualquer um irá estranhar um detento escritor, mas não sou preocupado. Estou como o Paulo Honório de Graciliano Ramos. Escrevo sem método. Vem a mim a noite de sete de setembro de 2007. A ação que me trouxe aqui.Um calafrio; tarde da madrugada; o trabalho simples: render o vigia e ir até o cofre. O tempo chuvoso e a noite gelada. Eu, o Jonas e o Isaías, armados; dispostos a suar naquele expediente. O clima estranho. Vi dois homens vestidos de preto num carro parado. Não dava tempo de suspeitar. Era chegada a ação. O papel com o poema de Ofélia me guiava. Entramos na agência com rajadas de metralhadora. De repente:Eu gritei, ao ver Jonas no chão:- Jonas! (tiros)-Isaías!Caíram com tiros espalhados pelo corpo inteiro. Não vi nada, apenas uma fisgada na coxa e desmaiei. Acordei num hospital com dois policiais ao meu lado:Um disse:- A casa caiu malandro.            Só depois de algumas horas, de forma vaga, o fato veio à memória.- Cadê o Isaías? – eu gritava.Aquele policial, que estaria no meu inconsciente como um algoz eterno, se manifestou:- Seus trutinha foi pro saco, já era, imbecil! E você só ficou aqui porque o diabo, de vez em quando, vence a batalha e impede que Deus mate mais um bandido.- Desgraçado! Verme!- Quer mesmo morrer?!- Então me mata, filha da puta.Tentou, mas foi impedido pelos colegas de farda:- Dessa vez escapou, mas eu te pego, neguinho.Pensamentos saltam nas minhas associações e conexões sobre o desfecho daquele assalto: os tiros, os policiais, a morte de mais dois manos. E eu teria de encontrar o meu atual destino: a cadeia. Aqui estou: Moisés dos Santos Pereira, 25 anos, mais de 20 anos de cadeia no artigo 157 e no artigo 121( colocaram no inquérito que eu havia matado o vigia que morreu com arma da polícia ).Essa desgraça que me aconteceu corroeu minha alma. Resolvi escrever não sei porque, apenas esse lugar sombrio, um papel, uma caneta e a escrita saiu naturalmente. Talvez os gibis que li tenham me empolgado. Os gibis de Ofélia. Não sei, quero apenas dizer o que levou ao dia em que perdi meus companheiros e quase morri. O certo é que quando voltei a ler gibi, tomei gosto por livros. É um alivio contra o tempo na cadeia. Parece que quando leio e escrevo essas grades não me aprisionam. Parece que saio daqui. Acho que nunca tive tempo para pensar na minha vida. Sempre na corda bamba, a necessidade exterminou a dúvida. Vivo, hoje, solitário, sem planos nem perspectivas. Fico apenas a refletir meu passado.

2.    A escravização no EgitoNasci na zonal norte, periferia de São Paulo. Meu parto foi numa rua da favela, já que não entrava carro onde morávamos. Nasce o menino Moisés. Minha mãe deu esse nome porque prometeu à minha avó que seu primeiro filho chamaria Moisés em homenagem ao profeta da bíblia. Não fui profeta, mas posso dizer que conheci os 10 Mandamentos ao contrário e emperrei no mar vermelho.

O garoto Moisés não era esperado na terra que melhor não fosse prometida. Minha mãe tinha 17 anos e meu pai 38. Meu avô obrigou a casar. A verdade é que mãe era prostituta e transou sem camisinha com um tal Valdemar, meu pai, e acabou ficando grávida. Sem abortar, o futuro estava traçado. Minha mãe se prostituía porque conheceu o Crack aos catorze anos. Desde então, se tornou viciada.Meu pai era ajudante, fazia um pouco de tudo. Vivia dos bicos que arrumava. Bebia de domingo a domingo. O álcool nutria seu estômago. Mas quando tinha trabalho, era muito esforçado. Afinal, tinha de ter dinheiro para tomar o veneno do dia-a-dia. Nos bordéis da cidade, se deitava com menores. Quando bebia muito, entrava em cena seu prazer sádico. Adorava bater nas menininhas com quem transava.Fomos morar num quartinho no meio da favela. Uma geladeira, um fogão e dois colchões em cima de sacos plásticos, já que o chão era de terra. Minha mãe deixou o Crack por um tempo. Quando me viu seu céu desabou em flores. Talvez mamãe pensasse que recebera seu primeiro presente de dia das crianças, um boneco bebê. Não sei, mas ela vivia entre a infância e as crueldades da maturidade. Desde cedo, teve de se portar como adulta. Tinha em seu corpo as marcas de uma vida que foi tocada violentamente. Mãe se doía, mas permanecia firme ao meu lado. Quase integralmente ali, enquanto meu Pai corria atrás de bicos, bebia cachaça e se divertia com garotinhas. Mãe vivia a brincar comigo. Às vezes, saia para pedir comida ou catar papelão.              O pior vinha nas noites que meu pai chegava bêbado:            – Vem cá, minha menininha! Venha conhecer a sentença das putas!(socos e pontapés)            E minha mãe recuava:            -Socorro! Socorro!            E ele batia em todo o corpo dela e esbravejava:            -Papai quer pegar você, putinha. Papai vai pegar.           No meu choro corria um ódio, um barril de pólvora. Minha mãe apanhava calada. Quando alguém ouvia os gritos, ela falava que eram brigas sem importância. Tinha medo de que eu não tivesse um pai. Valdemar, algumas vezes, pedia desculpas e trazia presentes. Eu sempre desconfiei que ele fizesse isso porque estava sendo ameaçado pelo tráfico. Sua história também possuía espinhos. Fugiu de casa porque era molestado e escravizado pelo pai. Chegou a São Paulo sozinho e só frequentou o bar. Mas não gosto de falar dele.            Cresci em poucos anos. Na quebrada, muleque cresce rápido pra aprender a se virar. Vence aquele que melhor se sobressair. Tem que conhecer as artimanhas e saber arrumar a sobrevivência. Meu pai continuava a bater em minha mãe, mas já era tempo daquilo acabar. Eu e mamãe saíamos para buscar latinha e outros lixos que davam algum trocado. Aqueles momentos foram os melhores que vivi em meio ao drama de nossa família. Mamãe dizia:            – As coisas são ruins, meu filho, mas estamos nelas e não temos a opção de reclamar. Cada dia é uma luta. Não sonhe muito, mas lute. Um dia quero ver você terminando a escola. Um moço bonito.            Eu ficava calado. Sua voz era a única sabedoria. Mamãe sofria muito, mas resistia bravamente por mim. Tinha desacreditado do mundo, mas acreditava que o mundo não tinha desacreditado dela.            Aonde íamos, ela dizia de boca cheia:- Esse é meu neguinho Moisés. Diz que quer ser escritor. Vai escrever muita coisa bonita.            De fato, aos 7 anos de idade, eu falei uma vez que queria ser escritor. Tinha visto um gibi com palavras jogadas. Eu o achei no lixo. Fiquei horas com o gibi que me fez esquecer da sujeira no serviço.            -Vou ser escritor de gibi. Vou escrever a história do menino no lago.            Meu pai resmungou como sempre:            – Escrever é coisa de boiola.            Mamãe o repreendeu em voz alta:            -Deixe o menino, Valdemar! Vai escrever histórias lindas, filho.            A voz dela era sempre tão suave. Parecia música.            Mas na maior parte do tempo eu tinha o desejo de vingança. Conheci a rua, conheci a favela, o córrego esquecido, sirenes e barracos, o esgoto social.Arrumei um jeito de conseguir uma arma. Meu pai ia pagar com a vida o que fazia com minha mãe. Eu queria matá-lo. Minha mãe tinha medo de denunciar. Denunciar pra quem? Pra polícia? Não! Só se falasse com os traficantes. Não perdoariam. Quis apenas que me dessem uma arma. Decidi que o mataria no bar.Eu tinha 9 anos de idade. Brincava de pipa e de pião, mas sempre estava trabalhando: mexia nos lixos, roubava uma bolsa na loja, um celular no mercado, uma garrafa de pinga. Fugia dos seguranças pelas praças do centro. Na hora do almoço, um pouco de cola trazia um gás. Se já havia matado? Não! Esfaqueei um segurança numa loja, só que ele não morreu. Peguei sete meses na FEBEM! Algumas torturas! Lá também esfaqueei um muleque que tentou me estuprar. Ele não faleceu. Tinha a ânsia de matar o policial que me pegou na Luz. Desgraçado! Dois tiros na barriga e eu só não morri por caridade de uma senhora. Demorou muito até que eu concluísse minha missão: matar. Fui ao bar onde meu pai dormia na calçada. Fiz questão de acordá-lo:- Vai… Filho da puta! É o seu fim! Morre na… Filho da puta! Essa é por ter espancado minha mãe!Descarreguei nove tiros. No rosto dele estava estampado o nível do meu ódio. Mais um bêbado morto. Finalmente, ia viver com minha mãe. Ela lamentou a morte dele, mas quando me viu, se sentiu aliviada. Não sabia que eu tinha assassinado o Valdemar, pensou que fosse o tráfico.Na hora saciava a minha vingança. Mas quando fui dormir, uma frase permeou a insônia: “Eu matei um homem!” Parecia que eu tinha plantado algo dentro de mim que seria uma grande árvore. E meu pai apareceu nos meus sonhos durante meses. “Eu matei um homem.”Mudamos de barraco. Mamãe queria que eu estudasse, mas eu não tinha tempo. O trabalho prevalecia. Ia fazer o que na escola? Comer? Meus avós não tinham condição de nos ajudar, ficamos sozinhos.Um ano entre vielas e viadutos, um ano como o bicho de Manuel Bandeira, catando comida entre os detritos, e minha mãe teve uma doença repentina. Mamãe começou a se sentir mal frequentemente. Fez um exame e descobriu que tinha pegado AIDS do Valdemar. O infeliz transou sem camisinha com uma prostituta soro positivo. Estava aidética. Ela não me contou. Eu a ouvi comentando com uma amiga. A primavera findou. Tocaram as sete trombetas e mamãe morreu numa noite de sábado numa cama de hospital. Suas ultimas palavras foram:- Lute pela vida, filho.Lutar…3.    

A não travessia do mar vermelhoMinha mãe foi embora e eu fiquei só. Fui morar na rua de vez. Roubava e baforava cola pra suportar o frio. Na rua, conheci Leco, meu companheiro. Roubávamos juntos, mas também brincávamos. A gente sempre tinha de improvisar. Fazíamos bolas com meias velhas e jogávamos futebol. Leco, como eu, tinha muitos espinhos no seu caminho. Havia sido abandonado pela mãe que estava presa. Nunca tinha conhecido o pai. Disseram que ele tinha sido morto pela policia:- Como é ter um pai? – chutando a bola de meia, perguntou Leco.- Não é muito bom! – respondi.- Não mente!- Não é mentira!- Seu pai foi morto!- Foi!- Por quem?- Não quero falar nisso!- Corta essa!- Não! – pulei num chafariz.- Eu vejo meu pai quando fecho o olho! E você?- Não vejo nem quero que ele me veja!- Como assim?- Como assim o quê? Seu pai não está aqui!- Eu sei!- Então?- É! É que ele nunca me viu!- Nem você viu ele!Leco ficou mal. Acho que fui muito bruto. A imaginação dele era o contato com o pai inexistente.Na rua, o pessoal tinha o costume de me chamar profeta. Foi ele que fez surgir meu apelido. A partir daí, fiquei conhecido como o profeta. Leco e eu éramos como unha e carne. Sempre andávamos juntos. Certo dia, eu fiz uma fita. Roubei uma mercearia. A polícia vasculhava qualquer suspeito. Alguém ia ter de pagar. Três horas da manhã, eu e Leco éramos muito parecidos, a mesma cor e idade. A polícia chegou a uma casa abandonada onde dormíamos alucinados de cola. Eu sonhava com o menino e o lago. O menino que dançava em volta do lago e cantava a natureza. Mas não se pode sonhar nessa perdição. Drummond estava certo. O menino esparramava no lago:Acordei com gritos:- Quem é o neguinho ladrão? – disse o policial que afogava o menino no lago.- Corre! Corre!- berrava Leco.(três tiros)-Leco! Leco! Cadê você? – eu gritava no escuro, mas o menino estava no fundo do lago.-Eu corri até que não ouvisse mais tiros, mas Leco sumiu do meu lado.Leco levou três tiros ao ser confundido comigo. Mais um vaso quebrara e deixava minha flor sem lar. Meu melhor amigo. Encontramos um no outro a superação da ausência. Tudo caía em gotas de orvalho.  4.    

Os mandamentos ao contrárioSaí pelas avenidas sem rumo. Deixei que a sola suja dos pés me levasse. Caído numa esquina, catorze anos, estava no centro da cidade-grande. Uns bebem, outros vivem na TV, outros se entorpecem de outra forma, outros vão à igreja. Todos fogem, mas ninguém sabe pra onde.Meu corpo ardia em febre na madrugada. Não tinha roubado nada ou nada tinha achado no lixo. Agonizava beijando a calçada. De repente, barulho de tiro. Na alucinação da enfermidade não entendi nada. Dois homens corriam.Um disse:- Eu conheço esse muleque.-Deixa disso, temos de fugir, disse o outro.-Vamos levar. Ele tá mal, retrucou o homem que me conhecia.- Se liga! Cê tá louco.Ele me colocou nas costas e me levou até o carro. Acordei dentro de um barraco. Haviam me dado remédio e melhorei. Os dois homens eram, na verdade, dois adolescentes em fuga que moravam na minha quebrada e conheciam minha história. Eram Jonas e Isaías.Isaías disse:- Certo, muleque? Lamento o que aconteceu com seu pai. Você tá melhor?- Estou!- Trouxemos você na fuga, falou Jonas.Eu conversei durante horas com os manos. Disse tudo que havia acontecido e que estava vivendo na rua, que comia quando roubava ou quando ONGs davam sopa. Falei que estava prestes a morrer. Os dois já faziam assalto à mão armada. Pedi ajuda. Disse que precisava de uma arma para me reerguer e que queria assaltar. Hesitaram, mas diante da situação, aceitaram minha proposta. Voltei para a comunidade e fui morar num barraco com eles.Meu primeiro assalto foi de uma carreta. Levamos peças de carro. Foram cem mil reais. A vida do crime começa a me ludibriar. Nunca tive tanto dinheiro. Esfreguei na cara do sistema as minhas angústias do dia das crianças. Comprei só roupas de marca. Passei a ter respeito por onde passava. A PT na cintura, o poder, o restaurante, as joias, os óculos escuros…Aos 16 anos, minha segunda cadeia. Entrei na FEBEM depois de ter assaltado um carro. Jonas e Isaías escaparam. Lá dentro, era protegido, pois ambos pertenciam à facção. Nunca me envolveram na organização, mas parte do dinheiro dos assaltos sempre era destinada a ela. Se eu queria ser irmão? Um piloto, quem sabe? Ia enfrentar quem arrastasse na quebrada. Mas ficava na minha. Medo de entrar, pois uma vez que entrou, não tem mais como sair.Um ano e meio e a sociedade cumprira mais um período letivo no meu crescimento dentro do crime. Voltei à ativa e continuei com assaltos audaciosos. O ódio dentro de mim era sinal de ação e adrenalina. O sistema que me criou beijara meus pés:- Vai, filho da puta! Todo mundo queto! É um assalto essa porra!Matar? Morrer?  Isso era uma consequência indiferente. Eu sei que eu não ia mais pedir esmola. Meu destino tava traçado.Às vezes, pensava em Leco e em Mamãe. Nenhum dinheiro do mundo era capaz de comprar a presença deles.5.    

Um consoloNuma terça-feira, encontrei o personagem central da minha história. Era por volta das oito horas quando Isaías me chamou para ir à escola com ele buscar sua namorada. Depois do encontro, tinha uma fita num condomínio. Cheguei à porta da escola; a mina do Isaías veio até nós e eu ouvi a voz de uma moça que a acompanhava, sua amiga, a voz que era tão bela como a canção de mamãe:- Olá!Foi como se as estrelas se reunissem e descessem até a terra para iluminar aqueles olhos, foi como se os sabiás se juntassem para entoar sua voz:- O gato mordeu sua língua?- disse ela.Eu, todo atrapalhado:- Oi? Não! Quer dizer…- Cumprimenta a mina! – intimou Isaías.- Ah! Olá!- suspireiNão conseguia falar, mas apenas olhar aquele rosto do amanhecer, como o nascer do sol que trazia luz.- Qual o seu nome?- perguntei.- Ofélia – respondeu ela.Ofélia, o nome da rosa, a palavra da primavera. Fiquei envergonhado e sem querer disse:- Você gosta de gibi?Não sei o que me ocorreu. Meu corpo trêmulo só pensava em correr e gritar. Há tempos que eu nem me lembrara do gibi. Por que aquilo vinha na minha cabeça?-Eu adoro gibi, eles me trazem outro universo, respondeu ela.   Se eu não esperava perguntar sobre aquilo, imagina a resposta dela. Fiquei pasmo e durante dez minutos conversamos sobre a fantasia do gibi. Foram dez minutos que viraram dez horas. Eu não quis falar da história do menino e o lago. Era muito triste.Mas tudo tinha que ser ágil, pois já chegava a hora de trabalhar. Era fácil assaltar condomínio. Todas aquelas grades e cercas nos protegiam quando entrávamos. Fomos casa a casa retirando o excedente dos Boys. É a profissão que apresentei melhor aptidão, o ofício que sobrou por fora do bolo mal repartido. Trabalhava! Batia o cartão com uma Ponto Quarenta engatilhada. Se nem banheiro me deixavam limpar… Trabalhava para mim e para os outros; segurança privada, especulação imobiliária, jornalistas farejando carniças, pastores criando igrejas, o estado abrindo concursos para vagas de policiais, os intelectuais de esquerda, a indústria de armas. Talvez nem façam mais questão de que eu pare de roubar. Vivem a me perseguir porque sabem que outro virá. Mesmo respondendo à altura meu lugar na estrutura do trabalho, sinto que preferem assim, que eu estou na mesma armadilha de um advogado.                                                                     Entrei numa das casas com um casal dentro. Aquele homem que me quer morto, aquele porco que senta no sofá com coca-cola e bebe meu sangue na TV, aquele burguês que me trata como rato, não entendeu o recado:- Pro chão, filho da puta!            O maluco quis ser herói e tentou pegar minha arma. Pediu pra morrer. Dei cinco tiros e ele caiu olhando para mim. O olhar ficou no meu pensamento. Não tinha o que raciocinar. Apanhar a vida inteira, morrer a vida toda, ser pisado. Acuado, recolhido, tinha de bater também, mesmo sem saber como bater, em quem bater. Na jaula, enfurecido, provocado, chicotado, o animal reage a qualquer aproximação. Um Morto? Quantos mortos eu não tinha visto, quantos mortos em frente a bares, em bueiros abertos? Quantas vezes tentaram me matar? Quanto mais ia viver?Voltei para casa e a depressão da cocaína fez da minha noite uma manhã cinzenta.- Por que matei? Tenho que parar! Aonde isso vai dar? Tenho que parar! Socorro! Mãe! Leco!No outro dia, veio à recompensa do assalto: dinheiro e drogas sem miséria.E Ofélia voltava na minha mente. Queria vê-la de novo. Fui até a escola e marquei um encontro. Pretendia impressionar; tinha dinheiro. Pensei num restaurante de luxo, uma boate… Mas quando a encontrei, veio à surpresa:- Oi, Moisés! Vou te levar num lugar lindo, disse ela.- Mas é que…- Mais nada! Vem!Fomos a uma exposição de gibis de rua. Eu não sabia o quanto ela era fascinada por desenhos e palavras. Me apresentou pessoas que faziam um gibi narrando a experiência da rua. Eram histórias que lembravam a minha época nas avenidas, cheirando cola com o Leco e pedindo esmolas. Depois fomos até um parque. As folhas caiam como plumas nos seus cabelos. Sentamos num banco. Ela ouvia atentamente meus lamentos do passado e minha satisfação com aqueles gibis. Por algum tempo, esquecera meus tormentos. Ela cantou aos meus ouvidos:- Sabe a história de gibi que mais gostei?- Não! – respondi- Aquela em que o menino beija a moça no parque.Sem que eu percebesse, nossos lábios se cruzaram e, pela primeira vez em anos, caía uma gota de amor no meu rio de mágoas. Meu coração se abria feito onda em alto mar. Eu e Ofélia! Quem sabe um filho? Quem sabe gibis e tardes no parque? Fita, crime, dinheiro, riqueza… Tudo se desmanchava no olhar de Ofélia, tudo era insignificante perante aquela luz que me guiava.Acordei no dia seguinte e só ela existia nesse mundo. Ah! E como seria bom se somente Ofélia existisse. Não era assim. Tinha que trabalhar e viver na berlinda. Qualquer falha poderia ser fatal. A polícia em cima e os grupos de extermínio multiplicando. Eu queria apenas amar Ofélia, mas tinha uma vida de sacrifício e dela não poderia escapar.Começamos a namorar, mas ela insistia em me pedir para largar o crime:- Olha, Moisés! Você já sofreu tanto. Não acha que é hora de largar esse negócio de roubar? Eu sei que é difícil, mas é melhor trabalhar feito escravo que estar no risco de morrer ou ser preso a cada instante.Eu entendia Ofélia, ela nunca poderia me entender. Eu tinha me cansado de pedir esmolas para a sociedade. Não queria mais comer o lixo de ninguém. Quem ia me aceitar? Ferrado e ex-presidiário! Não tinha mais volta a minha estrada. Eu estava formado e agarrava uma profissão. Aquele era o meu ramo, minha forma de sobressair na concorrência.Continuei com Ofélia, mesmo sendo do crime. De algum modo, ela me aceitava, quem não me aceitava era o pai dela. Seu Jurandir sabia do meu trabalho e isso já era o bastante para não me suportar:- Esse muleque é criminoso. Ele pode ser o que quiser, mas não se mete com filha minha. Vê se me ouve, Ofélia. Eu não quero filha minha casada com bandido pra depois ter de ser consolada em frente a um caixão.Seu Jurandir era moralista, mas não estava errado. A aposentadoria do crime é a morte ou a prisão e ocorre cedo: Rafael, Alessandro, Fernando… Quantos foram embora. Seu Jurandir tinha um motivo a mais. Seu filho, Reinaldo, morreu aos 18 anos numa invasão da polícia na favela. Trinta viaturas; queriam pegar o neguinho que estava vendendo drogas. Não teve nem como se mexer. Reinaldo sofreu pena de morte por trabalhar no tráfico de drogas, por ser um empregado do tráfico.Eu encontrava Ofélia escondido, mas ela era muito pressionada pelo pai. Frequentemente, falava como mamãe:- Veja, Moisés. Para nós que nascemos pobres, a vida é uma luta por um mínimo de fôlego para continuar. Aqui não é como nos gibis.Depois de alguns meses de encontros secretos, seu pai descobriu. Como? Um primo de Ofélia, chamado Celestino, me denunciou. Ela não era moça para bandido. Quem é moça para bandido?  Fiquei furioso. Seu Jurandir não permitiu mais Ofélia sair de casa. Deixei de vê-la, de beijá-la, de consolar meus medos em seu colo, de abrirmos gibis como se fossem os astros. Dois dias depois, ela me procurou no barraco; estava sem rumo:- Eu te amo, Moisés, eu te amo que me arrepia o coração.- O que foi, Ofélia?- Nada. Não posso lhe dizer. Mas eu sempre te amei desde aquele dia no colégio.- Tá se despedindo?- Não… Não… Me abraça! Eu te amo, Moisés.Ofélia chorou no meu peito. Chorou como se fosse despejar uma enchente na favela. Chorou e chorou até suas lágrimas chegarem a Prometeu acorrentado no rochedo, até encher o manto de Poseidon de modo que seu mar virou as lágrimas de Ofélia. Ela correu como se estivesse correndo no meio do deserto.- Espere, Ofélia! – eu disse.Mas ela só corria e gritava.- Eu te amo, Moisés.Posteriormente, fui até a casa dela disposto a enfrentar seu pai. Mas, ao chegar lá, não havia ninguém. A casa estava vazia e vazio ficou meu ser. Um vizinho falou que tinham ido para Minas, outro que tinham ido para a Paraíba. Ninguém sabia ao certo para onde havia ido Ofélia, mas eu sabia que ela tinha ido sem voltar, que ela tinha ido para fora de mim. Ela se despedia quando falava que me amava. Seu Jurandir saiu de São Paulo e fez com que ninguém soubesse para onde partira. Ofélia se foi, como se foram Mamãe e Leco. Como se foi meu Pai. Só me restaram Jonas e Isaías.Tinha perdido mais uma pessoa, mas fiz o de sempre: segui em frente cambaleando. De assalto em assalto, eu me destruía nas drogas e em puteiros para esquecer Ofélia. Vi manos morrerem, policiais a torturar; tomei muito chute na cara, muito soco. Matei quem atravessava minha mira. Festas, Boates… De algum modo, subia à elite. Quando estava só, pensava em Ofélia. Onde está Ofélia? Ficava com o gibi que ela deixara no meu bolso na despedida. Lá estava escrito versos de Vinicius de Morais em forma de dedicatória:Amo-te, meu amor… não canteO humano coração com mais verdade…Amo-te como amigo e como amanteNuma sempre diversa realidade.E de te amar assim, muito e amiúdeÉ que um dia em teu corpo de repenteHei de morrer de amar mais do que pude.6.    

A terra prometida que nunca chegou                                Eu lia aqueles versos na minha consciência. Anotei num papel e repetia incessantemente. Levava para os assaltos para ter a sorte de não morrer ou de morrer, não sei. Quando a dor me cercava, Jonas e Isaías tentavam me consolar:- Relaxa, mano! Nem tudo na vida dá certo, ou melhor, quase nada na vida dá certo e a gente tem de enfrentar o cotidiano esperando que o amanhã não seja o fim de tudo.Isaías ainda tinha força para dar uma palavra de incentivo. Entretanto, eram somente palavras. Nem ele suportava mais. Jonas lamentava a sua infância bruta e divagava nas suas filosofias:- Esse mundo é louco e todos são loucos, todos. Profetas e atores, cidadãos comuns, empresários, nós, todos loucos. Que sentido vemos nessa passagem na vida, mano? Nunca entendi nada? Só podemos ser todos loucos? Não tem razão!Íamos pela cidade a fazer o mesmo itinerário: roubar e correr. Minha única família era Jonas e Isaías. Aos 20 anos, lá estava eu, um profissional do crime. Com a fúria correndo nas veias.Numa sexta-feira, fiz a barba para mais uma batalha. Isaías rezava ao lado de Nossa Senhora Aparecida para que nada de mal acontecesse. Eu pensava no sumiço de Ofélia diante daquele poema; onde está Ofélia? Jonas dizia:- Depois dessa fita, vou visitar minha mãe. Tenho que comparecer lá na véia. Vou ficar um mês fora. Já falei com os mano da organização.Isaías também estava querendo ver à família. Pena que eu não tinha mais pai nem mãe para visitar; fiquei contente por eles; iam ter um tempo de alívio. Dei um forte abraço no Jonas:- Tudo de bom, parceiro!Abracei Isaías:- Manda um beijo pra sua mãe, quando for visitar ela, irmão!Um calafrio; tarde da madrugada; o trabalho simples: render o vigia e ir até o cofre. O tempo chuvoso e a noite gelada. Eu, o Jonas e o Isaías, armados; dispostos a suar naquele expediente. O clima estranho. Vi dois homens vestidos de preto num carro parado. Não dava tempo de suspeitar. Era chegada a ação. O papel com o poema de Ofélia me guiava. Entramos na agência com rajadas de metralhadora.

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